EDITORIAL
Crítica da ideologia da autonomia
Pelo menos desde há cinco anos, os relatórios do Banco Mundial vêm apresentando uma série de recomendações aos Estados nacionais e poderes locais, recomendações que, à primeira vista, parecem encontrar-se com demandas históricas dos movimentos sociais. Trata-se de recomendações de ampliação da participação social nos orçamentos, de construção de mecanismos de controle sobre os gastos públicos e prioridades de investimentos por parte dos cidadãos (com prioridade ao combate à corrupção), de políticas públicas e projetos não-governamentais que estimulem a auto-organização em cooperativas de produção e consumo mercantil, de ações voluntárias de solidariedade comunitária, de formas autônomas de auto-sustentação e inclusão no mercado, de auto-administração em aspectos variados da vida social etc.
Assim, todo tipo de iniciativas vem sendo encaminhado, seja pelos governos, as igrejas, os movimentos sociais ou associações independentes de cidadãos: hortas comunitárias, coletivos de reciclagem de lixo, preservação de lagoas e parques ecológicos, produção coletiva de alimentos não-prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, cursos de qualificação de mão-de-obra, produção alternativa e independente de meios locais de comunicação, projetos de educação nas periferias... A sociedade capitalista seus governos, párocos, partidos, ONGs, sindicatos parece ter descoberto, de uma hora para outra, que as pessoas querem participar, querem controlar, querem decidir. Mais ainda: que essa é hoje uma necessidade para que a sociedade, imersa numa profunda crise econômica e social mundial, possa continuar existindo. Afinal, acompanhando essas recomendações vem todo um discurso ideológico sobre autonomia, cooperação, democratização, participação, solidariedade.
Por outro lado, essas recomendações, saídas da esfera dos especialistas da economia, aparecem cada vez mais para um número crescente de pessoas como constitutivas de um projeto viável de gerenciamento da sociedade, projeto que assume sua forma acabada nos programas de governo das "esquerdas oficiais" em vários países do mundo (com destaque crescente para o "orçamento participativo"). Elas comporiam um caminho real de humanização do capitalismo "globalizado", um elenco de reformas econômico-sociais e políticas que seria um contraponto sério a um mercado mundializado cada vez mais instável, que se apresenta para a maioria dos cidadãos como independente das instituições políticas democráticas de cada país e, mais ainda, causador de profundas desigualdades sociais. Estaria assim se constituindo um projeto de reforma social que teria a dupla vantagem: tanto de democratizar, ampliando a participação e o espírito de iniciativa e autonomia das pessoas em relação aos assuntos de sua vida social, quanto de minorar e quem sabe solucionar os problemas sociais. O chamado ao qual uma quantidade crescente de pessoas tem atendido parece conduzi-las, a partir de suas próprias experiências cotidianas de iniciativa e participação, a encontrar-se positivamente com esses projetos políticos nacionais, projetos cuja viabilidade parece ser demonstrada já por essas iniciativas autônomas das quais participam. A própria instituição do Fórum Social Mundial, como lugar do encontro dessas iniciativas da "sociedade civil" com os grandes organismos da esquerda oficial e do Estado, evento que teve e parece que continuará a ter grande repercussão, demonstra que é essa hoje uma perspectiva que "veio para ficar", uma perspectiva de fôlego, que deve nos próximos anos adquirir uma crescente importância: trata-se da elaboração de um projeto de reforma social e administração do sistema com dimensões cada vez mais universais. Afinal, o que isso realmente significa, segundo a nossa reflexão?
A derrota e a integração
Como tudo no mundo, esse projeto ora em elaboração tem uma história; e essa história tem seu começo precisamente nos grandes movimentos contestatórios que, principalmente a partir de 68, iriam se desenvolver nos países industrializados, principalmente na Europa ocidental, mas também no Leste europeu.
Estamos falando dos movimentos que, num primeiro momento, sob diversas formas, passaram a questionar os sistemas hierárquicos que se fortaleceram enormemente durante o grande desenvolvimento econômico que os países capitalistas conheceram nas duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra; pouco a pouco, quase tudo passou a ser contestado: os costumes, a cultura, o "perder a vida para ganhá-la", a moral dominante... uma série de novas questões passou a ser apresentada, em busca de um (novo) sentido para a vida.
Em seguida, essa contestação assumiu o conteúdo de uma crítica ao próprio sistema, apresentando-se e desenvolvendo-se como contestação claramente proletária. Já em 1953, na Alemanha Oriental, os operários metalúrgicos de Berlim insurgem-se contra a ditadura stalinista exigindo um "governo dos metalúrgicos". Em 56, na Hungria, Conselhos Operários autônomos são formados, exigindo a democratização da sociedade e o real poder dos trabalhadores, enfrentando tanto os "reformadores stalinistas", quanto em seguida as tropas do Pacto de Varsóvia. Em 68, é a vez dos trabalhadores tchecos, que, também enfrentando uma divisão da cúpula totalitária dos stalinistas no poder, organizam-se de modo autônomo. A partir das greves com ocupação de fábrica em maio de 68, na França, movimento que pela sua força e repercussão teve profundo impacto sobre as forças iniciais de contestação, inclusive sobre as lutas operárias que desde a insurreição proletária húngara em 56 pipocaram em diversos momentos na Europa ocidental, abriu-se todo um novo período de lutas proletárias: nos EUA, na Alemanha ocidental, na Espanha franquista, em Portugal, na Grécia... mas, particularmente na Itália, se desenvolveu talvez a mais rica experiência de lutas autônomas em um país capitalista industrializado naquele momento (ver, a esse respeito, os artigos publicados em contraacorrente 11, set-dez/00).
O que, fundamentalmente, durante toda a década dos 70, passou a ser posto pelas diversas formas de contestação d@s proletarizad@s desses países foi a recusa intransigente a continuar submetid@s ao mando, à passividade, à hierarquia, à falta de controle sobre a própria vida, à banalização da existência, ao racismo, ao patriarcado enfim, a tudo isso que a sociedade de mercado e do trabalho assalariado necessariamente implica. Em suas diversas feições, aquel@s que fomos submetidos ao assalariamento e a mercantilização, insurgiram-se pelos mais diversos motivos e demandas contra a insuportável ordem de coisas estabelecida.
As classes dominantes reagiram, por um lado, com uma feroz repressão às formas autônomas de luta e organização d@s operári@s; por outro, com medidas econômicas de reestruturação produtiva (fundamentalmente como forma de responder à recusa do trabalho que se estendera enormemente naqueles anos); e, ainda, com medidas de integração parcial das demandas dos movimentos contestatórios. Particularmente, sobre esse último aspecto, é notável como houve todo um giro no cinema e na publicidade das mercadorias oferecidas, cujas temáticas passaram a mobilizar os anseios de liberdade e independência e a buscar ultrapassar determinados tabus morais tradicionais; nesse momento também cresce e se afirma o chamado "cinema de arte", como contraponto à contestação ao lixo cultural mercantil, e a contracultura surge como um novo nicho de mercado. A recém descoberta categoria sociológica da "juventude" passou a ser um conceito mercadológico central. A natureza aparece como novo cenário do turismo e do lazer, em resposta ao nascente movimento ecológico anticapitalista. A irresponsabilidade moral, o individualismo, o egoísmo argumentado são apresentados como resposta às demandas de autonomia individual. As artes das neovanguardas são levadas para os museus e exposições oficiais, para fazer companhia às obras do modernismo do início do século.
Enfim, na medida em que, devido a repressão, o novo movimento contestatório não conseguiu subverter as relações sociais existentes, todo um elenco de questões levantadas pela crítica proletária ao sistema do trabalho assalariado e das hierarquias foi pervertido e encampado pela ordem. O sistema se esforça, desde então, a falar a voz d@s contestador@s, enquanto ex-contestadores falam agora a voz do sistema. A astúcia da ordem está exatamente em apresentar como intenção sua aquilo que, antes, fora apresentado contra ela; e ela agora, ao encampá-lo, apresenta-o e com razão! ao seu favor.
A "inclusão" no mercado
Quando hoje o sistema busca mobilizar para a administração da sociedade existente esses anseios históricos de participação e decisão, ele o faz a partir desse aprendizado adquirido com o enfrentamento ao movimento contestatório dos 60 e 70, que repercutiu ainda nos 80, e precisamente na medida em que as demandas daquele movimento marcam ainda hoje, e de modo aparentemente definitivo, a sensibilidade de grande parte das pessoas: querer participar e decidir não é mais um tabu, pelo contrário, virou realmente moeda corrente. Acontece que, ao assim fazer, o sistema retira desses anseios de participação e decisão todo caráter contestatório: eles se tornam, assim, apenas uma ideologia, uma falsa consciência que busca realizar-se num mundo em que, mais do que nunca, toda participação é falsa e toda decisão impotente. Afinal, hoje mais do que nunca, a economia capitalista e portanto toda a vida cotidiana que se encontra sob seu domínio resiste a qualquer poder de decisão das mulheres e dos homens concretos;mesmo as corporações |
monopolistas mundiais e seus organismos internacionais de planejamento e controle (Banco Mundial, FMI etc) nada mais fazem do que buscar reagir de modo racional (racionalidade empresarial desde logo determinada pelos critérios de rentabilidade) aos desmantelos de um mercado mundial incontrolável. Agora, como antes, a ideologia da participação e da autonomia, que se torna por esses dias a ideologia dominante do mercado mundializado, só pode realizar-se contando para isso com a integração das iniciativas dos de baixo, capitalizando esse valor-de-uso produzido pelas experiências de resistência.
E "capitalizar" é precisamente o objetivo central dessa ideologia; pois, como toda ideologia, embora sendo uma consciência falsa, responde a necessidades reais do sistema e tem influências reais sobre a vida. O que, antes de tudo, busca-se com a ideologia da autonomia e da participação é manter a universalização das relações mercantis e monetárias, através da inclusão no mercado de um maior número possível de pessoas. Expliquemo-nos.
Embora sejam uma conseqüência direta e inevitável da atual configuração do capitalismo mundialmente monopolizado, os atuais níveis de marginalização da compra-e-venda (marginalização que atinge países e continentes inteiros, além de enormes parcelas da população nos próprios países capitalistas centrais) não são desejados pelos Senhores do mundo. Nos atuais níveis de integração da economia mundial, os seus diversos setores e ramificações estão todos entrelaçados e articulados numa hierarquia em cujo topo se situa um pequeno número de corporações; e, pelo peso e a influência reais dessas corporações sobre a produção e a venda totais, toda compra-e-venda é, direta ou indiretamente, compra-e-venda com elas. Todo comprador, todo vendedor "marginalizado", ainda que não seja um comprador direto ou vendedor direto de alguma corporação capitalista, tem influência, na atual crise, sobre o próprio processo de valorização do capital.
Sem dúvida, uma simples relação monetário-mercantil (por exemplo, a que determinadas cooperativas estabelecem internamente e entre elas) não é "em si mesma" uma relação capitalista, pois essa exige o assalariamento, mas uma "circulação mercantil simples"; apesar disso, do ponto de vista da economia total, do movimento inteiro do capital em busca de autovalorização, essa simples relação monetário-mercantil não lucrativa termina sendo necessária. Primeiro, porque é na esfera das simples compras-e-vendas das mercadorias que uma mercadoria, entre elas, pode ser comprada e vendida: a força de trabalho. Assim, manter a relação mercantil-monetária como forma de toda relação em que os homens busquem produzir sua existência material, é mantê-los incluídos no sistema universal da compra e venda da força de trabalho, do assalariamento, logo, do lucro.
Mas essa necessidade mortal do capitalismo se estende ainda a um segundo aspecto: é que qualquer cooperativa de produção ou de consumo compra ou bens de produção ou bens de consumo dos grandes produtores; como qualquer experiência educativa forma mão-de-obra para o capital; como toda autonomia dos coletivos de trabalhadores no interior das grandes empresas, segundo as novas formas de organização da produção, continua inteiramente submetido ao disciplinamento e à hierarquia do trabalho assalariado... e assim por diante. Não por acaso todo o esforço dos organismos internacionais do capital de financiar projetos de "ocupação e renda" e de "economia solidária", justamente buscando trazer e manter no interior da lógica mercantil as alternativas de sobrevivência d@s marginalizad@s do mercado.
Muit@s falam em exclusão. Na verdade, ninguém, a rigor, está "excluíd@" do mercado, pois também @ desempregad@, aquel@ que nada possui senão sua força de trabalho e, portanto, tem que vendê-la para sobreviver, é um(a) proletarizad@. Também el@ só tem acesso ao que precisa através das relações de compra-e-venda. Mas, claro, estar impossibilitad@ de vender sua força de trabalho, de ter dinheiro para comprar os valores de uso de que necessita para viver, significa estar incluíd@ (isto é, submetid@) no mercado em condições de profunda marginalização. Essa é sempre uma possibilidade dada pela própria existência do assalariamento, da dependência ao salário, do domínio da mercadoria e do dinheiro sobre o conjunto da vida social.
É precisamente a mesma a lógica que impõe o combate à corrupção como proposta central dos órgãos de gerenciamento internacional do capital, na qual se incluem medidas de "participação e transparência na administração da coisa pública". Pelos cálculos de tais organismos e seus assessores estima-se que, no Brasil, por exemplo, o capital privado perca cerca de 200 milhões de dólares anualmente devido a corrupção (através de propinas das empresas aos governantes, legisladores e técnicos; desvio de dinheiro público que fragiliza a infra-estrutura produtiva a cargo do Estado e assim por diante...). Em reação ao caráter "antieconômico" da corrupção, segundo recente relatório do Banco Mundial, cerca de 40 a 50 bilhões de dólares deixaram de ser investidos nos últimos tempos. Ora, o combate à corrupção (que, na verdade, é congênita ao sistema, mas numa proporção "aceitável" à lógica de reprodução do capital) é de fundamental interesse para as corporações transnacionais; daí, exatamente, todo o chamado à criação de mecanismos institucionais de "controle cidadão" sobre o orçamento e os gastos públicos.
A "dialética" do capital e a autonomia como ideologia
Quando o sistema busca hoje, de todas as formas, integrar as formas de resistência e os anseios de participação, decisão e autonomia, ele nada mais faz do que aquilo que é mais próprio a esse sistema: transformar em mercadoria tudo aquilo que pode ter utilidade real ou ilusória, submeter a si tudo o que lhe é contrário, capitalizar todo valor de uso; essa astúcia lhe é essencial, é a sua malícia mais estruturante. O valor de uso de uma mercadoria, cujas qualidades se relacionam com a satisfação de nossos desejos e necessidades, é o oposto do valor de troca, que se relaciona apenas e exclusivamente com o dinheiro que lhe é equivalente; mas a mercadoria é sempre a unidade de valor de uso e valor, sob o domínio deste último. Assim, é próprio da dialética do capital cuja célula elementar é a mercadoria ter o que lhe nega como parte de sua própria estrutura.
Mas as coisas que se tornam mercadorias (roupas, móveis, livros...) são apenas coisas: não têm vontade, nem ação. A sua transformação em mercadoria só acontece porque os homens nos relacionamos uns com os outros como produtores privados e independentes; enfim, as coisas só são mercadorias devido a forma das nossas relações sociais. Assim, as coisas, por elas mesmas, não podem resistir à forma mercadoria, não podem negá-la. Quando falamos que o valor de uso das coisas "nega" o seu valor de troca, estamos dizendo apenas de uma "negação" conceitual, uma contradição entre suas qualidades objetivas e o modo mercantil como nos relacionamos com elas. Só os homens podem de fato negar a forma mercadoria das coisas ao negarem as relações sociais que transformam tudo inclusive e antes de tudo a si próprios em mercadoria.
Por isso, quando o sistema busca astuciosamente integrar a si o que lhe nega as formas de resistência d@s proletarizad@s e seus anseios de participação e decisão ele tem justamente que lhe retirar todo caráter negativo; ele tem que transformar em inclusão na lógica do sistema mercantil aquilo que, de início, busca negá-lo; ele tem que, enfim, transformar em positiva a nossa vontade de controlar as nossas vidas. Somente ao perder seu caráter negativo, subversivo, contestatório, as demandas d@s de baixo podem ser integradas. Ao não serem mais do que uma negação interior ao próprio sistema, uma negação que é parte do sistema, como o valor de uso é parte da mercadoria, as demandas de participação e decisão, de iniciativa e autonomia tornam-se uma mera ideologia.
A autonomia não é o oposto do capitalismo; pelo contrário, o capitalismo necessita sempre de um certo grau de autonomia dos indivíduos. Antes de tudo, precisa da autonomia dos produtores de mercadorias, que se encontram no mercado como independentes uns dos outros; que, por não decidirem coletivamente a produção e a distribuição da riqueza social, mas sim às costas do diálogo e da comunicação real com os outros, consideram-se autônomos. Claro, essa é uma autonomia ilusória, pois o produtor de mercadoria está sempre submetido às leis das trocas de mercadorias sobre as quais não têm nem podem ter qualquer poder; mas, ainda assim, é uma autonomia real: a autonomia do indivíduo solitário e egoísta da sociedade burguesa, uma autonomia frente aos outros.
Não é à toa que este conceito foi pensado na filosofia burguesa da modernidade, com o filósofo alemão Immanuel Kant, mas tendo atrás de si toda uma trajetória do pensamento solitário, já em Descartes, e prolongando-se até o pensamento pós-hegeliano com Max Stirner e seu anarco-individualismo, com Proudhon e suas cooperativas produtoras de mercadorias: é que ele expressa as ilusões do indivíduo da sociedade de mercado de poder decidir suas próprias ações num mundo que, por todos os meios, demonstra-se impenetrável às suas pretensões subjetivas. A atual ideologia da autonomia tem sua raiz mais profunda naquilo que de fato ela sempre afirma, mesmo quando pretende negá-las: as relações mercantis.
Chegamos assim, hoje, à caricatura das ilusões burguesas com a autonomia. O mundo da mercadoria se apresenta cada vez mais como o mundo da "diferença não negativa", uma arca de Noé onde tod@s cabem: cada qual em seu lugar, após o ingresso devidamente pago e apresentado. Respira-se o espírito de autonomia em toda parte: autônomos se sentem os estudantes universitários do Brasil quando preferem fazer pic-nic ao invés de comprar um pacote turístico, autônomos se sentem os autonomistas italianos da Rede Ya Basta! e seus "tutti bianchi" antiglobalização; autônomos se sentem os especialistas do Direct Action Network (DAN) em seus treinamentos para "ação direta", autônomos se sentem os que estiveram presentes no Acampamento Internacional da Juventude do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre; tão autônomos, enfim, como se sentem os coletivos ideológicos completamente apartados das lutas cotidianas e os grupos de ajuda mútua da Igreja e do Lions Club. Eles se sentem...
Ao contrário, pensamos que a autonomia d@s proletarizad@s só pode ser a negação da autonomia do produtor de mercadorias e do trabalhador assalariado, pois esta é sempre a heteronomia do dinheiro e das leis cegas do mercado. A autonomia d@s proletarizad@s é, assim, uma autonomia que nasce não de uma qualquer idéia de homem e de razão, de um qualquer projeto de sociedade ideal, mas da luta cotidiana contra as alienações. Ela só pode ser o esforço de crítica e negação práticas do mundo coisificado, da hierarquia do trabalho assalariado e do poder separado do dinheiro e dos Estados.
A luta d@s proletarizad@s e a negação como fundamento
Na história das idéias, tanto quanto nas conversas cotidianas, a toda proposição sempre se opõe a pergunta pelo seu fundamento: "em que, afinal, você se fundamenta para dizer ou pensar isso?", eis o que pensamos ou falamos quando ouvimos alguém falar alguma coisa sobre o mundo. Na filosofia, a resposta sempre foi buscada em uma espécie qualquer de absoluto o logos, Deus, a Razão, a Natureza, o Homem da antropologia filosófica enquanto fundamento positivo, a partir do qual todo o resto existe e é compreendido ou explicado. Os sistemas da tradição filosófica, como as ideologias totalitárias do século 20, sempre foram assim uma espécie de hipertrofia do fundamento, em que uma parte da realidade é elevada a princípio a partir do qual todo o restante é submetido.
Nos nossos dias, o sistema dominante já recusa qualquer fundamentação: ele apenas se apresenta como é, e o modo como ele é parece ser o único possível. A atitude pós-moderna na arte, na ideologia social, na filosofia, na publicidade e na política levou essa experiência social ao extremo de seu positivismo acrítico: nela parece já não haver fundamento para nada e a realidade é apenas aquilo mesmo o que aparenta ser. Essa representação do mundo como sem-fundamento, sem-razão de ser, expressa sem dúvida o nível enlouquecido a que chegou em nossos dias a nossa experiência com uma vida que nos escapa quase inteiramente, com um mundo quase completamente coisificado, em que o movimento autônomo da economia mercantil economia que só obedece às suas próprias leis submeteu a si toda a nossa cotidianidade, a maior parte de nossas atividades e relações sociais. O que está indicado nessa sensação crescente de vida sem-sentido é que, de fato, a vida perdeu todo sentido para a sociedade de mercado, na qual nos sentimos e realmente estamos alienados, alheados, num mundo que nos é completamente estranho. Este é, de fato, um mundo impenetrável às nossas razões subjetivas, no qual nos sentimos na maior parte do tempo como peças de um joguete cujas regras ignoramos e sobre as quais não temos qualquer poder real. Este mundo que se tornou uma aparência sem fundamento tem, portanto, um fundamento; na verdade, ao recusar a apresentar seus motivos, o sistema único de alienações do mercado e dos Estados apenas reconhece que já não tem motivos para existir.
Para nós, não se trata de negar que a realidade e a nossa ação modificadora sobre ela tenham algum fundamento, mas sim que esse fundamento é a negação mesma que somos. A experiência social cotidiana d@s proletarizad@s é a experiência de uma classe em sua composição diversa e nunca permanentemente dada, pois histórica e em luta e submetida ela mesma a um conjunto de relações sociais em permanente modificação que se define antes de tudo por suas condições negativas de existência: @ proletarizad@ é, antes de tudo, aquel@ que não é nem pode ser o que deseja e necessita, é quem foi submetid@ e não sem resistências! pela força, à condição de assalariad@, e uma vez assim, e ainda segundo as necessidades do capital, expropriad@ do conjunto da vida, de seus valores, de seus gestos, de seus desejos, de sua liberdade. É essa condição de assalariamento num mundo completamente mercantilizado que nos nega. E é à medida que assumimos essa negatividade que nos é constitutiva, prolongando-a na própria ação negadora deste mundo alienado, que nos capacitamos a ser sujeitos de nossa própria vida.
Não nos movemos por idéias ou ideais, mas pela ação, princípio de tudo, e ação negativa, extensão de nossas próprias condições negativas de existência. É essa negação cotidiana, a resistência ao mundo alienado da mercadoria e do dinheiro, em suas múltiplas formas cotidianas de opressão, que fundamenta e pode fundamentar a constituição de um outro modo de viver socialmente. Assim, ao assumirmos na prática a negação que somos, não partimos de um fundamento positivo, de um ideal a realizar. Partimos, isto sim, da nossa própria experiência cotidiana de negação daquilo que nos nega.
Pensamos que só tendo a negação como fundamento podemos fugir tanto às armadilhas das ideologias tradicionais, que desembocaram sempre em novas formas de mundo fechado, com suas hierarquias e opressões, quanto do movimento integrador que o sistema atual lança sobre toda negação parcial, fundada já de partida em proposições facilmente realizáveis e integráveis. Esse é um problema, antes de tudo, de consciência histórica: tanto no sentido de compreender as experiências históricas anteriores das lutas dos oprimidos, como também e principalmente no de saber se situar historicamente, isto é, de ter em vista os mecanismos com que os atuais dominadores contam para neutralizar e domesticar nossas lutas.
E, precisamente porque se trata de um problema de consciência histórica, trata-se de um problema prático que implica também uma seríssima posição teórica. Temos dito reiteradas vezes que a teoria para o nosso coletivo não é senão a expressão das nossas experiências enquanto classe, pensadas num esforço de compreensão delas numa totalidade; experiências com o mundo alienado que são, do mesmo modo, experiências de luta contra ele.
Ao pensarmos deste modo a teoria, nós a pensamos de um modo inverso do que sempre pensou a tradição filosófica, religiosa e científica do ocidente, inclusive as ideologias revolucionárias do movimento operário. Teoria é, para nós, o oposto de qualquer sistema, de qualquer explicação definitiva da realidade, de qualquer projeto de reforma ou modificação do mundo, de qualquer ideologia. É o oposto de qualquer derivação lógica de algum princípio racional; neste sentido, não pode ser nunca a fala (o logos) de alguma mente privilegiada seja ela um grupo "teórico" ou científico, um líder, um partido que deduza de uma primeira idéia um corpo coerente de outras idéias subordinadas, nem mesmo que explique para outros o que deriva da experiência em comum.
Teoria só pode ser, insistimos, a autocompreensão que a classe em luta podemos ter de nós mesm@s e de nossas ações: o sujeito do conhecimento da ação só pode ser o sujeito mesmo da ação. Este sujeito som@s o múltiplo, o diverso, movemo-nos a partir de lutas diversas, e só poderemos nos compreender a nós mesm@s através do diálogo entre as diversas parcelas, os diferentes fragmentos, as múltiplas experiências que somos.
Por que estamos falando isso? Porque pensamos que hoje, mais do que nunca, a crítica da ideologia dominante, que é cada vez mais a "ideologia da autonomia", tem que ser também uma crítica dos próprios postulados das ideologias revolucionárias. Porque pensamos que é necessário, agora e daqui por diante, experimentar ainda mais as iniciativas de negação do mundo da mercadoria, que é necessário conversarmos sobre elas, pensando juntos o seu significado. Há que não abrir mão do caráter negativo de nossas iniciativas, reconhecendo que elas são experiências sempre provisórias, que devem elas mesmas ser negadas, ultrapassadas, superadas. Havemos de renunciar a movermos-nos por "ideais" ou "projetos" pré-concebidos. Havemos de recolher na reflexão comum o papel fundador da negação comum. Enfim, manter a negação e o diálogo práticos, capacitando-nos a fazer ir pelos ares a totalidade da sociedade de mercado que busca sempre integrar a si tudo o que pretende lhe negar. A essa sua dialética que sempre se conclui positivamente, como síntese, que busca recuperar as negações para o interior do sistema alienado (tal como ocorre com a socialdemocracia, os trotskismos, os novos e velhos bolchevismos, os maoismos, os proudhonismos...), só podemos contrapor a dialética da negação contínua, a dialética que dissolve as alienações; só podemos, enfim, opor, à dialética do capital, a irrenunciável ruptura.
O nosso "princípio é a ação", a ação que sempre nega, que se mantém no mundo e não sobe aos céus das ideologias.
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Baltasar Gracián, em A arte da prudência, na máxima 13, diz: "Agir com intenções: seja segunda ou primeira. A vida do homem consiste numa milícia contra a malícia do homem. A astúcia luta com estratégias de intenção. Nunca faz o que indica. Aponta para enganar, golpeia indiferente no ar e desfere o golpe, atuando sobre a realidade imprevista com dissimulação atenta. A fim de conquistar a atenção e a confiança dos outros, deixa transparecer um intento. Logo em seguida, porém, muda de posição e vence pela surpresa. A inteligência perspicaz previne-se da astúcia observando-a detidamente, espreita-a com cuidado, entende o oposto do que a astúcia quis que compreendesse e percebe de imediato as falsas intenções. A inteligência ignora a primeira intenção, aguardando a segunda, e até a terceira. A simulação cresce mais ainda ao ver seu truque descoberto e tenta enganar contando a verdade. Muda de jogo, engana com a aparente falta de malícia, sua astúcia se baseia na maior franqueza. Mas a observação se adianta, discernindo através de tudo isso e percebendo as sombra envoltas em luz. Decifra a intenção, que parece mais singela". E, na máxima 17, acrescenta novos conselhos de prudência à "inteligência perspicaz", buscando ajudá-la na luta contra a malícia e a astúcia: "Variar no modo de agir. Isso vai confundir os outros, em especial seus rivais, depertando-lhes a curiosidade e a atenção. Se agir sempre de acordo com a primeira intenção, seu agir será previsível e frustrado. É fácil abater um pássaro que anda sempre em linha reta, mas não aquele que altera seu vôo. Não aja sempre conforme a segunda intenção, tampouco repita seu jogo, e os outros descobrirão a artimanha. A malícia fica à espreita, é preciso grande sutileza para enganá-la. O jogador perfeito nunca joga a peça que se espera, e muito menos a peça que seu adversário espera".