Para a reflexão sobre a situação d@s estudantes

Daniel

O estudante desde há muito tempo é um elemento disputado por amplos setores da sociedade burguesa. Dos movimentos religiosos aos movimentos da velha esquerda, eles são objetos de cobiça e desejo. Uma "santa cruzada" é realizada para a "cooptação" desses jovens. Sejam as igrejas pentecostais, proliferando em cada esquina com um batalhão destes à sua frente seja pelo movimento carismático católico com suas armas de sedução ou ainda pelos partidos da esquerda ou da direita do sistema que investem cada vez mais nesses "quadros" emergentes das escolas e principalmente da academia; ou mesmo pelos mass media com suas massivas campanhas publicitárias voltadas preferencialmente a este público, buscando favorecer um estilo de vida hedonista-consumista apartado da realidade. Mas qual o motivo de tanta cobiça? Porque tanta disputa em torno do estudantado?

Para respondermos tais questões e os desdobramentos que delas resultam, torna-se necessária uma análise séria da situação dos estudantes. E esta não pode ser feita senão tomando como ponto de partida a totalidade em que vivemos, o sistema, para assim compreendermos o meio estudantil em seus aspectos totalizantes.

Ora, vivemos a época do capital monopolista transnacional, sem reconhecer barreiras, nem limites para a imposição de sua lógica. Capaz de adentrar-se nos lugares mais longínquos e incorporar-se na (ou incorporar a) mais milenar das culturas, submetendo tudo e a tod@s à sua lógica mercantil. Todo modo de vida humana se transformou, sob a hegemonia do movimento incontrolável da economia capitalista. Não mais apenas o tempo de trabalho é controlado, também o tempo de "não trabalho" passou a sê-lo, integrando-se, em um só tempo, ao tempo da produção de valor, numa total economização da vida. Com essa crescente necessidade do controle do tempo "livre" crescem os investimentos nos ramos de bens culturais. Mais do que nunca, aumenta a exigência do uso da técnica, da especialização. E ainda, no momento em que estão postas todas as condições materiais para a destruição desse sistema (seu limite histórico), mais do que em outras épocas é necessário ao capitalismo se afirmar como fase "natural e final" da história.

É aí que entra o estudante. Este representa um elemento ainda não completamente domesticado, mas em pleno processo de domesticação. Muitos são os que afirmam que os estudantes são dotados de uma "revolta natural", mas quando essa revolta ocorre não é senão sua recusa a amadurecer numa sociedade que nega a vida e os prazeres, dando em troca uma sobrevida com falsos prazeres. Essa domesticação é necessária não só pela posição que ele ocupa (de forma temporária, a de estudante), mas também pela posição que ele ocupará (de forma definitiva e já adestrada, a de profissional especializado). Por outro lado, o estudante localiza-se na hierarquia entre os proletarizad@s, analogamente aos profissionais qualificados do século XIX. Também são proletarizad@s por não disporem dos meios de produção, sendo sujeitados a proletarizar-se, mas diferente dos operários fabris ou de outros setores proletarizad@s submetidos a processos de trabalho mais duros, apresentam simpatia e autocontemplação com a sua própria situação. Acham-se os mais autônomos entre os homens e, no entanto, estão atrelados e são sustentados pelo binômio família-Estado, as autoridades de controle social. Chegam a pensar que as suas próprias vidas já são em si a negação do que está posto.

O estudante se encontra numa posição distinta d@s demais proletarizad@s. Mas nem ao menos se reconhece como tal. A posição que ocupa temporariamente é a de domesticação e a do adestramento para a inclusão no mercado de trabalho. É o futuro advogado, médico, professor, sociólogo, filósofo, economista e toda espécie de funcionário do sistema. Trata-se, portanto, de uma posição provisória que o prepara para o papel definitivo que virá assumir, como elemento positivo e conservador, dentro do funcionamento da sociedade mercantil. É, assim, uma iniciação capaz de manter-se inteiramente separada da realidade histórica e social. Esta separação só é possível na cabeça dos estudantes, que vivem a esquizofrenia de isolar-se numa "sociedade de iniciação", desconhecendo o seu futuro e a contemplar-se na situação do seu presente.

O estudante no seu mundo separado vive as mais diversas ilusões. Julga-se tão mais livre, quanto mais profunda sua dependência. Acredita ser o mais autônomo dos seres sociais, entretanto, depende direta e conjuntamente dos mais poderosos sistemas de autoridades sociais: a família e o Estado. É a expressão máxima da docilização. Aquilo que é ilusão imposta aos trabalhadores assalariados, é por ele assumido e interiorizado como ideologia, participando de todos os valores e mistificações do sistema.

Com a contemplação de sua situação é o mais fiel consumidor da cultura massificada. É este o seu principal ópio, o espetáculo cultural. No momento em que alguns afirmam que a "arte morreu" (Debord), ele vive a sua necrofilia nos cinemas, nos teatros e em todas as casas da chamada cultura contemporânea. Ele, no seu universo separado, não percebe o movimento que se desenrola sob os seus olhos, a total submissão da vida à lógica mercantil; submissão esta realizada em todos os níveis da vida cotidiana. Ele tenta fazer a separação entre trabalho e lazer numa sociedade em que crise da cultura resultou na própria crise da vida cotidiana, lugar agora do trabalho forçado (assalariado), da passividade, do lazer repetitivo e sem graça, do tédio, da falta de comunicação e diálogo entre os indivíduos. É o principal público dos shows bussines, dos mass media e dos eventos oficiais (estatais) de cultura. Não bastando, eles mesmos produzem seus espetáculos, as calouradas, os eventos da UNE (Bienal, Congressos), movimentos patrióticos chauvinistas e moralizantes como o "FORA COLLOR", a campanha pela CPI da corrupção, "SOU DA PAZ" e tudo mais que apareça na TV para aplausos dos pais e professores progressistas.

O que há de mais desprezível nos estudantes é o orgulhar-se em ser politizado. Organizados em grupelhos, individualmente ou arrebanhados pelos partidos da esquerda e da extrema esquerda do sistema, acreditam ter a fórmula para revolucionar o mundo. Com suas ideologias, astros partidários e dirigentes musicais acreditam ser os revolucionários por excelência. Vêem nas suas atividades acadêmicas um ponto central na recusa do sistema para a construção de um novo mundo. Mas, aqui novamente, apresentam-se as separações do "mundo fechado" dos estudantes, o que é próprio do sistema capitalista. Aqui se expressa a separação entre os que pensam e os que fazem. A academia, sendo o lugar das especializações e dos especialistas, como frutos desta, os estudantes não são outra coisa senão "proto-especialistas". E é assim marcada a história do movimento estudantil: entre os que fazem e os que pensam; entre os especialistas da ação e os especialistas do pensamento.

O movimento estudantil reproduz essa separação, por exemplo, na análise da chamada "crise da universidade". Ignora que tal crise é apenas reflexo de uma crise mais geral do mercado e do Estado, das dificuldades do reajustamento tardio deste setor da produção de mão-se-obra especializada a uma transformação do conjunto do aparelho produtivo. Acabam caindo num diálogo de surdos, sem olhar para a realidade à sua volta. Enquanto alguns continuam a brigar pela priorização acadêmica de uma cultura dita "geral" a futuros especialistas que não saberão o que fazer dela, outros fazem discursos pela modernização da universidade com sua reinserção na vida social e econômica, ou seja, a sua adaptação às necessidades do mercado.

As separações se expressam ainda mais uma vez na organização dos próprios estudantes. Suas entidades são hierárquicas e burocratizadas e quando não são é porque nada são. Reproduzem no interior do seu movimento a passividade própria da espetacularização do capitalismo. Acreditam ter as respostas das mais diversas questões. Nos bares da boêmia crítica de tudo sabem, sem de nada entender; especialistas em um tudo, citam Nietzsche, confundindo a pseudocrítica da moral com a crítica da moral sexual; moral sexual a qual são incapazes de superar, pois também aqui a ideologia conserva in extremis os velhos papéis sexuais do sistema de gêneros. Misóginos, só são mobilizados por um corpo feminino na medida em que tal desejo possa ser mostrado; homófobos, só desejam o corpo masculino quando tal desejo não pode ser dito. Também aqui sua potência da fala é a fala da impotência. Por se acharem autônomos frente ao sistema produtivo, ficam felizes com as suas condições de existência. Filiam-se a qualquer corrente ideológica para poder também usar um "kit-revolução" com as respostas para tudo que diga respeito à contestação consentida pelos "clássicos" e pela ordem.

Nessa vida alienada, na qual toda experiência verdadeira se tornou impossível, a não ser a experiência de luta contra ela, a consciência estudantil tem a sua fenomenologia própria. Na busca de fugir do despotismo familiar, da qual são incapazes de uma verdadeira crítica, pois dele dependem para tudo, os estudantes buscam a "lei do pai" nas regras da contestação consentida; crendo-se revolucionários, querem conscientizar o povo "despolitizado". Depois, vendo suas aspirações juvenis fragilizadas pela necessidade de reconciliação com a família e domesticadas pela estrutura emburrecedora do ensino universitário, eles querem ainda manter sua "boa consciência": assim, querem fazer filantropia, esmerando-se em ser profissionais especializados com "compromisso social". Por fim, reconciliando-se com aquilo que desde o início fazia com que eles fossem o que são, integram-se simplesmente no sistema de hierarquia social. O fato é que os estudantes, seja ensinando a pescar, seja dando o peixe, seja pescando junto numa posição superior (ou falsamente igual), não passam de peças inatas da atual divisão social do trabalho.

Conseguirão @s estudantes, reconhecendo-se proletarizad@s, romper com a auto-contemplação da sua consciência estudantil?

 

ANTERIOR
ÍNDICE
PRÓXIMA