O espaço da revolução

EP

(do Coletivo Acrático Proposta)

 

O som da fala, a prática viva da relação: comunicação. Estreitando os laços através de palavras cada vez mais próximas, tudo contribuindo para a construção do novo, da ruptura, e não da novidade disseminada nos círculos intelectuais-especialistas do estudo das artes: aqueles mantenedores da representação.

Da linguagem, surgem a cada instante mais e mais sentidos que se multiplicam, transpassando pessoas e seus pensamentos, construindo espaços e caminhos para um novo mundo, da raiz, das bases e não da "humanização" da esquerda oficial mundial. Estamos na luta pela construção. Estamos na luta pelo crescimento pessoal, coletivo: pela troca, que não é a troca gerida pelo Estado e inclusa no mercado. São trocas de nossas vidas, das experiências de nossas vidas as quais vivemos, criamos, e junt@s recriamos.

E para essa troca, construímos também um espaço. E ele não é um espaço reservado, especial para as comunicações e discursos repetitivos como o faz as "oficialidades institucionais". Ele torna-se o espaço da resistência. Assim, onde mais poderia ser esse espaço senão o cotidiano de nós, trabalhador@s e desempregad@s oprimidos? De nós, @s subjugad@s pelo gênero?

A construção do espaço de resistência e troca de experiências abraça a necessidade de viver a revolução no cotidiano de nós, pessoas¹, a partir de nossos trabalhos, das praças, das ruas, das casas, nos bairros, e em todos os lugares onde há a opressão do Mercado e do Estado. E aí mora um perigo, pois os confrontos com os discursos vazios daquel@s que tentam apropriar-se da nossa radicalidade enquanto humanos oprimidos são muitos, e, pouco a pouco, fundem-se esses discursos com teorias que utilizam as palavras que utilizamos na nossa resistência cotidiana parecendo estar cada vez mais próximos de tod@s nós.

Aquel@s que nos confrontam tentando nos atrair para uma saída dentro dos espaços do Mercado e do Estado falam de autonomia, falam de participação política, falam da derrubada das fronteiras. Eles falam uma linguagem que pode se confundir com a nossa, mas essa linguagem não é a nossa: a autonomia que eles difundem é a autonomia de se poder morrer sem ter respirado a liberdade de poder escolher seus próprios caminhos, falam da autonomia de uma cooperativa que coopera com o Estado e com o Mercado, pois torna-se uma instituição dentro deles contribuindo para a permanência da opressão. Fala-se de participação política, onde os "bonzinhos" da esquerda vêm até a favela, até a periferia, até aqui, onde estão nossas casas para bondosamente nos dar a chance de dizer o que achamos sobre as leis que eles implementam, e as "novidades" que eles trazem. Também falam da derrubada das fronteiras no contexto do mercado: livre mercado significa mais um grande triunfo da instituição sobre o indivíduo!

Sempre quando lutamos, somos enxergados pelas instituições do capital² – por estarem inclusas no Mercado, é necessário assim se referir a elas - como mais um produto com potencial de institucionalização: então torna-se este o grande triunfo do poder do capital, pois tudo pode ser apropriado. Existem vários exemplos de como a "máquina" nos atrai para as suas "engrenagens", um claro exemplo é o recente evento Fórum Social Mundial, que para nada mais serviu além de nos mostrar o quanto é fácil desconstruir a radicalidade no processo de construção de um espaço revolucionário anti-hierárquico, autônomo, cotidiano, que contesta todas as "engrenagens" ou "partes" participantes da máquina mercadológica e estatal: aquelas instituições que utilizam o argumento de que podem modificar o capitalismo a ponto de humanizá-lo. E mesmo se se conseguisse domar a indomável besta capitalista, se acredita mesmo que ela seria melhor para tod@s nós? Em espaços nos quais simplesmente ao entrarmos já nos tornamos parte dele, não há como resistir: afinal, nunca se viu ninguém fugir de um furacão correndo para seu olho.

Já é difícil resistirmos cotidianamente, sabotando de várias formas o Estado e o Mercado, imagine quando nos encontramos dentro de um espaço criado para despotencializar nossas lutas mais radicais. Nesses espaços de neutralização, obviamente, não há diálogo! Muito menos o diálogo prático que dia-a-dia construímos localmente e planetariamente para nos contrapormos ao poder da máquina que planetária e localmente também tenta nos neutralizar.

Da Cúpula à Cópula: a construção dos espaços

O presente de sofrimento, de trabalho exaustivo e escravo, de desemprego, e da miséria, nos compeliu a construir um espaço de resistência diferente dos espaços de resistência já institucionalizados vividos até aqui. Temos diversas tentativas na história do mundo e da humanidade de resistências que minaram por curto tempo a repressão dos espaços hierárquicos, e são dessas experiências de luta que trazemos diversas reflexões para a luta de hoje. Não esquecemos o passado, pelo contrário, aperfeiçoamo-lo para cada dia tornarmo-nos mais radicais frente à máquina estatal-mercadológica.

Somos filh@s da humanidade que possuem como esforços as resistências valorosas que procriam em corpos de indivíduos e reflexões que são cada vez mais difundidas, porém institucionalizadas pelo Mercado e pelo Estado. Mas estas são ainda experiências valorosas capazes de nos orgulhar como herdeir@s de sangue por seus êxitos, e fazer-nos chorar por suas derrotas e sangue derramado. Mas, como já foi dito, nada é perdido. Quando construímos a partir do passado, lembrando dele, refletindo-o – mas não vivendo dele –, estamos deixando a esterilidade provocada pela repressão da instituição. A cúpula é estéril! E é esse o espaço da sociedade atual: o Mercado e o Estado esterilizam a resistência do ser humano utilizando diversos meios.

Nos encontramos como indivíduos presos a um contexto de opressão, com algumas resistências entre sabotagens e entrelaçamento de corpos para troca de experiências. Quando nos encontramos no espaço da cúpula – o Fórum Social Mundial é um bom exemplo desse espaço – estamos sem perspectivas, nos encontramos presos a uma tendência única que simula a resistência e mina a radicalidade. O nosso cotidiano é estéril enquanto um todo opressor. O Fórum Social Mundial é estéril pois não produz nenhuma reflexão do cotidiano, e mesmo que esse seja o esforço desses espaços (e do Fórum Social Mundial em particular), nada se tem, pois esses espaços são justamente da instituição que a radicalidade cotidiana combate. A esterilidade da cúpula não tem sabor nem a troca de sabores entre as pessoas e grupos que são essenciais para alimentar a ruptura com a instituição na formação de espaços livres. A cúpula é hierarquizada, e esse meio institucionalizado força ou faz os indivíduos se acostumarem com a burocratização3, que maquia, muitas vezes, a hierarquia e o especialismo. A cúpula é o espaço que está acima das pessoas, controlando-as: é o espaço que mede as vontades dos indivíduos que lá estão com uma finalidade já pré-determinada.

Mas, como contraposição à cúpula, nasce o espaço da cópula: molda-se um espaço da criação. Local maior da organização e interação entre todas as partes do todo. A cópula não se mostra estéril, pelo contrário, mostra-se um espaço propício para a procriação da reflexão e das lutas: proliferam idéias em direções diversas. Cópula é o espaço da união que criará novos espaços de copulação, e dessas uniões surgem as diversas vozes que nascem como flores da revolução em campos férteis.

Mantendo o espaço revolucionário

Ao contrário da eventualidade da cúpula, a cópula é cotidiana, é onde se tem expressa a sabotagem, a resistência, a luta que sente a necessidade de se organizar no sobreviver do dia-a-dia, diante da avassaladora mão opressora do patrão ou da fome e miséria causadas pelo Estado e pelo Mercado. A reflexão sobre as relações entrelaçadas das pessoas a caminho da consciência da luta é feita no esforço de manutenção permanente desses espaços que muito bem se formam sem precisar de fóruns oficiais para se dar. A sabotagem não se institucionaliza, pois a sabotagem também prejudica a esquerda oficial legitimadora da opressão, pois é um esforço autônomo d@ trabalhador@ a favor de seu corpo, em prol de sua vontade.

O que se pretende é uma reflexão conjunta, e aí sim uma grande ligação de corpos, vozes, vontades, travando contato para a realização comum da emancipação. Essa é a construção do espaço da cópula, da liberdade, dos encontros marcados sem idéias e pontos pré-determinados, sempre dispostos a uma reavaliação de sua função, sua função de mantenedor da luta. A cópula é o espaço do diálogo prático, da interação fertilizadora e procriativa, onde há atuação e não a participação de um público que, como no teatro, ao final da peça apenas aplaude. Essa é a cópula, o ato prazeroso da troca de experiências: idéia-base da construção.

Dessa forma, o contato nos gera. Somos feitos de vozes, hoje caladas pelo mesmo opressor de tod@s. O que nos controla, também nos compele a discutir, resistir, falar sobre o diálogo livre e prático. A interação toma todos os nossos corpos e se espalha e explode em mil: com mil, copulação, reprodução de sentidos de um e muitos em diálogo permanente, reflexivo e auto-reflexivo; interação de uma cópula eterna-social. Se espalhar... resistir ao Estado e ao Mercado, resistir às ilusões do cotidiano, às atrações do circo estatal-mercadológico. Recriar relações já minadas há tempos por uma embriaguez provocada pela repressão e pela hierarquia e o mercado causadores da apatia social. E façamos a resistência hoje, como herdeir@s – não de teorias vazias, mas da prática viva e lúcida – marcad@s desde o nascimento com o fogo da vontade pela revolução, nos façamos abertos para unir e partir nossas vozes em objetivos diversos e também em um só objetivo: a destruição do sólido sistema capitalista, das relações despersonalizadas.

A partir de tudo isso, temos como principal objetivo a reflexão sobre a construção desse espaço livre e de caráter revolucionário. Resistimos a muitas coisas, e por anos praticamos essa resistência sozinh@s, e às vezes sem o saber. Hoje, o esforço é o de refletir e trocar essas experiências de resistências, e nos unir para focá-las em um e, a partir deste, vários pontos da opressão. O que nos resta é afinarmos vontades e juntos conhecermos quem somos para desenvolvermos a luta em diversas instâncias. A luta de um@ é a luta de tod@s. A luta primeira é a luta contra a opressão, e essa opressão surge por vários lados. Assim, sabemos claramente que a única forma de resistir a todos esses focos de opressão é unirmos forças diversas, convergindo e divergindo, mas em diálogo. Sabemos que a única forma de resistirmos é nos comunicando dentro do cotidiano, uma vez que somos um@ e muit@s, mas hoje, ainda frac@s, despedaçad@s.

Manter o espaço da emancipação custa-nos força, desejo, vontades. Custa-nos nossas vidas, tempo. Mas é isso o que nos resta! Não temos outra opção: é resistir e a resistência torna-se mais efetiva se é feita de forma unida, mesmo correndo o risco de procriar em críticas redundantes; mas, o que fazer? Em nossos corpos, em nossas vontades, em nossas ações, redunda o peso do braço de ferro da instituição. E quando estivermos perdendo a comunicação em qualquer ação nossa, teremos a certeza de que companheir@s estarão sempre ao nosso lado para nos chamar novamente ao diálogo e assim podermos junt@s construirmos outras vias ou aperfeiçoarmos a já percorrida.

A luta nunca parou! Historicamente ela se fez de várias formas e se faz hoje de muitas outras. É nosso momento de contribuir, junt@s. É o presente. As coisas estão acontecendo de forma a caminhar para essa aproximação e, mesmo com algumas escorregadelas, estamos avançando sem cessar.

Porém, para continuar o caminho da revolução, ainda necessitamos dar diversos passos, porém dois em muitos momentos se destacam: primeiro, precisamos estimular nossa radicalidade na nossa união. Precisamos estimular nossa auto-crítica e reflexão sobre nossa luta a ponto de entrarmos em contato permanente e auto-construtivo uns/umas com @s outr@s de forma a radicalizar o nosso espaço sem sectarismos, mas com uma prudência e coerência revolucionária do caminhar da revolução e não a caminho de mais implementações reformistas. E, segundo, precisamos nos abrir cada vez mais para as nossas vontades e para as nossas trocas de experiências conjuntas nos espaços do cotidiano, de forma que estaremos sempre dispost@s a exercer o que somos, um@s, e muit@s: os corpos da resistência em copulAÇÃO.

 

Notas

1. Veja bem, aqui não estou me referindo a "viver da revolução" que significa tornar-se especialista da luta revolucionária, o que não serve à revolução, pois o indivíduo, grupo, etc. que vive da revolução, se subjuga à instituição partindo para terrenos piores, propiciando a mercantilização da luta, vendendo produtos ligados à radicalidade revolucionária, além de ocorrer um fechamento da "luta" (já corrompida) nesses atores.

2. Na verdade, pode-se incluir aqui todas as instituições ligadas ao Estado e ao Mercado e que fazem parte dele, por exemplo: ONG’s, Partidos, Instituições Estudantis, etc. Aqui falo das instituições como reprodutoras da hierarquia presente no Estado/Mercado, sendo assim mantenedoras da cadeia de opressão que esse aparelho estimula. Sendo então essas instituições parte dele, como podemos estar em diálogo com tais grupos, partidos, ONG’s, etc.?

3. Aqui podemos dizer que um aparato gera o outro e vice-versa, já que a hierarquia necessita de burocracia, e a burocracia gera uma hierarquia, mesmo que seja a hierarquia do "mais apto a executar o trabalho". Não se discutirá aqui as questões da hierarquia e burocratização passando pela idéia de especialismo, uma vez que aqui não se apresenta como um espaço para essa discussão.

ANTERIOR
ÍNDICE
PRÓXIMA